A oração da Gestalt, muitas vezes vista como individualista, é alvo de muitas críticas. Nossa intenção é aprofundar o raciocínio e refletir se o seu intuito não era destacar o respeito à individualidade e como isso contribuir nas relações incluindo a relação terapeuta-cliente.

Escrita pelo fundador da Gestalt-Terapia, Fritz Perls (1893-1970), a oração da Gestalt está assim descrita: “Eu sou eu, você é você. Eu faço as minhas coisas você faz as suas. Não vim ao mundo para viver de acordo com suas expectativas, nem você está neste mundo para viver de acordo com as minhas. E se, por acaso, nos encontrarmos será lindo. Se não, nada há a fazer”.

Será que nada há a fazer se não nos encontrarmos? Vamos desistir, não vamos tentar de novo? Não há outras possibilidades, outros meios, outras chances para nosso encontro, para nossa relação, para nós?  Tais reflexões nos impulsionaram a fazer desse tema – a Oração da Gestalt – uma live pelo Centro Gestáltico de Fortaleza – bem no ápice de muitas reflexões sobre os relacionamentos interpessoais, incluindo os terapêuticos, diante do contexto da pandemia.

Como afirma Sheila Antony “Viver é conviver, existir é coexistir”. Nessa perspectiva, pensar as relações como nos apresenta Perls não seria contraditório com a gestalt-terapia? Por sua vez, no seu livro “Processo criativo”, Zinker traz uma interessante crítica à oração da GT. Ele diz “Essa perspectiva (referindo-se à oração da GT) não é adequada para se lidar com a noção da responsabilidade social, com a ideia de as pessoas tomarem conta umas das outras na terapia grupal ou em qualquer outro contexto comunitário” (p.182). E, particularmente, achamos que não dá conta não. E, portanto, na perspectiva como Gestalt-terapeutas, temos que ampliar nossa consciência, compreendermos o sentido de existência, de ser em relação, de liberdade, responsabilidade e individualidade que nos caracteriza.

Um elemento que se torna figura da Oração é a questão de “nos encontramos ou não”, ou seja, o encontro! E o encontro puxa o elemento ‘presença’, pois só há encontro se existir presença. E para existir presença, é necessário o contato.

“Contato e encontro são funções da presença”, diz Ribeiro (O ciclo do contato, 2019, p. 54). Vejamos: o encontro se dá entre duas pessoas e também cada um consigo mesmo. “Quando o outro me sente presente em mim mesmo” (p.54), ou seja, quando o outro percebe a minha atenção e consciência para comigo mesmo, isso facilita que ele também se sinta presente para mim e para ele. E assim, o encontro acontece. “Se eu não estou presente em mim, eu não estarei presente para o outro” (idem, p. 54). Consequentemente, não é possível haver encontro, porque não foi possível haver contato.

Voltando à Oração: “se por acaso nos encontrarmos, é lindo, se não, nada há a fazer”. O encontro, quando acontece, é maravilhoso. Mas não necessariamente tem que acontecer, e também não é obrigatório que, ao acontecer, ter que permanecer numa situação onde esse encontro já não existe, onde uma ou ambas as pessoas não se fazem mais presentes. E nesse sentido, não há a fazer mesmo. Ninguém é obrigado a ficar em relação nenhuma.

Outro aspecto importante que cabe aqui é a questão da responsabilidade, que vem lá do Existencialismo, cujo tripé, segundo Ribeiro (2012), é composto pela vontade, a liberdade e a responsabilidade. Cada um de nós somos livres para escolhermos o que quiser, e com isso, somos responsáveis por nós mesmos. Isso não significa que sejamos egoístas, pois a responsabilidade é pessoal, mas é também coerente, assim como a escolha é livre, mas também consciente.

Consciência e coerência nas nossas escolhas e responsabilidades diz do nosso direito à individualidade, sem sermos individualistas. Ou seja, uma responsabilidade coerente e uma escolha consciente permite que eu me aproprie de mim sem desrespeitar o outro. Ou seja, você é você e eu sou eu. Quando eu sei quem eu sou, eu posso saber quem você é, e assim, posso respeitar a mim mesma e a você, e me desapegar do controle, sabendo que nós não somos responsáveis pelas expectativas que os outros fazem a nós e vice-versa.

Então, temos aqui realidade e expectativa, encontro e desencontro, ou seja, podemos pensar o aspecto das polaridades e dos conflitos. Zinker (2007), traz dois tipos de conflitos: saudáveis e criativos ou confluentes e improdutivos. O primeiro se relaciona com awareness clara de si mesmo e do outro, assim há a diferenciação e a possibilidade de respeitar, cada um, o seu limite. Já os conflitos improdutivos e confluentes estão relacionados com a falta de clareza na awareness, pois os envolvidos não conseguem perceber seus próprios limites exatamente porque se perderam na relação, não se reconhecem mais na sua individualidade, e porque não conseguem enxergar a sua responsabilidade, colocando para o outro.

A Oração da Gestalt pode ser compreendida como uma relação que acontece baseada em conflitos saudáveis, pois reconhecer que não há nada a fazer é reconhecer os meus limites e os do outro, e ficar em paz com isso. “O conflito que se repete de forma estereotipada, sem soluções específicas nem aprendizados, promove uma cumplicidade entre as pessoas, não um contato” (Zinker, 2007, p. 218). Ou seja, às vezes, ter que fazer algo para sustentar aquele encontro, ou o não desistir e não deixar ir, pode ser uma relação confluente que não permite que as pessoas se percebam e percebam ao outro. Perceber-me também significa olhar para todas as minhas faces, ou seja, conseguir integrar as minhas polaridades.

Integrar as minhas polaridades requer olhar para os meus limites, meus erros e dificuldades. E não é fácil, dói bastante. Por outro lado, não integrar as nossas polaridades, não acolher os nossos fracassos e fragilidades, nos coloca em relações adoecedoras, que não nos deixam seguir livremente, e nem experimentar o amor por nós mesmos e pelo outro.

O gestaltista “é, antes de tudo, um responsável por si mesmo. Sem ser um isolado, um egoísta, ele é alguém que, amando-se antes de qualquer outro, aprendeu que seu amor por si mesmo se transforma na sua própria medida de amar os outros” (Riberio, 2021, p. 62). Portanto, como gestalt-terapeutas, precisamos aprender a integrar as nossas próprias polaridades, para que possamos facilitar esse processo nos nossos clientes. Muitas vezes, é a relação terapêutica que propicia as pessoas a (re)aprenderem a ter amor por si mesmas, e assim poderem amar os outros.

E você, o que pensa sobre a Oração da Gestalt? Já fez psicoterapia? Compartilha com a gente nos comentários.

Com afeto,

Juliana Diógenes

(CRP 11/3336)

Gestalt-terapeuta do Centro Gestáltico de Fortaleza

&

Lastênia Soares

(CRP 11/0998)

Gestalt-terapeuta do Centro Gestáltico de Fortaleza