Das dores e sabores de chegar à velhice
Escrito por Fátima Diógenes
Quando começa o processo de envelhecimento? No dia em que nascemos? Aos dezessete anos? Aos trinta? Aos sessenta anos? Setenta? Dependendo da referência que tomarmos, este início pode variar. Acho interessante a forma de resposta da língua inglesa para as perguntas: “Quantos anos você tem?”. I’m sixty-three years old. A tradução literal seria: “Eu sou/estou sessenta e três anos velha”. E: “Qual a idade desta criança?”. “How old is this child?”. Tradução literal: Quão velha é esta criança?
Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir.
Cora Coralina
Independente da referência, nós vamos envelhecendo ao longo da nossa existência e, no entanto, enquanto estamos vivendo este processo natural, não temos esta compreensão antes de chegarmos à Estação da Velhice. E está tudo certo. Vivemos as coisas de cada idade, as delícias e as dores das fases do nosso desenvolvimento: infância, adolescência, juventude, vida adulta, maturidade e velhice.
À medida que a velhice se aproxima, vamos nos dando conta de que o processo já tinha iniciado. Iniciei o reconhecimento do meu processo de envelhecimento quando estava próxima de completar 50 anos. Até então, eu tinha a compreensão teórica, de observação e acompanhamento da velhice de outras pessoas. Nesta época eu continuava com muita disposição para o trabalho, para viajar, sair com minhas amigas, tinha muitos projetos a concretizar. Eu me sentia cheia de energia para o mundo externo.
Mas algo dentro de mim já anunciava a mudança de Estação. Na época, escrevi um texto falando das minhas inquietações e desconfortos com a proximidade da minha festa de aniversário de cinquenta anos. Logo após meu aniversário, decidi não pintar mais o meu cabelo, assumindo a cor original e a chegada dos fios prateados. Iniciado estava o meu processo de libertação dos padrões estéticos, ainda que eu nunca tenha sido uma pessoa vaidosa.
A partir daí, comecei a me dar conta de que meus interesses estavam mudando. Festas, viagens longas, algumas atividades profissionais, não despertavam mais o meu interesse de imediato. Passei a selecionar mais as minhas escolhas pessoais e profissionais.
Entre minhas idades de cinquenta e sessenta anos, sofri muitas e dolorosas perdas afetivas: minha mãe, amigas e amigos, separação amorosa e outros rompimentos afetivos. Foi uma década muito movimentada.
Iniciei a década seguinte, onde estou no momento, olhando mais demoradamente para o espelho. Queria ver mais de perto as ações físicas do tempo sobre meu rosto e colo, reparando no que elas representavam para mim. Percebi a chegada da flacidez dos meus músculos e procurava em vão a outrora maciez e firmeza da minha pele. Considerei mais vantagem abandonar os inúteis espelhos.
Estava sentindo muito mais o meu corpo: as limitações na agilidade, o cansaço depois de muitas horas de trabalho, a diminuição da minha resistência ao estresse físico e emocional. Ah, já não tinha a mesma força física de antes, isto era um fato; as tempestades da vida me abalavam, agora, de outra forma. Sentia, no entanto, a minha força espiritual aumentando.
Continuei a me libertar dos padrões estéticos. Comecei a pensar que, quando uma mulher completa 60 anos, ela se torna perigosa. Como assim? Ela se torna perigosa porque já perdeu muitas coisas e, principalmente, perdeu pessoas que ela amou muito: por morte, separações, rompimentos ou simples afastamentos. E aprendeu a sobreviver apesar das feridas.
As perdas, se não nos aniquilam de vez, nos tornam mais fortes emocional e espiritualmente. Perdemos o medo de viver porque perdemos o medo de perder. Nos conectamos com os ganhos, muitos ou poucos, que a vida nos deu. E aprendemos a seguir.
Uma mulher de 60, começa a fazer escolhas mais conscientes, mais dentro do que realmente importa para ela. Expressa mais as suas ideias, se posiciona diante dos seus pares, filhos, da sociedade. Às vezes, isto não acontece de forma muito clara para ela ou para os outros. Mas internamente, a transmutação aconteceu.
Torna-se perigosa porque já não faz coisas somente para agradar o outro; porque olha para a frente por saber que não tem mais todo o tempo do mundo, como ela achava que tinha quando era jovem. Então ela se faz muitas perguntas.
- Qual o significado de ter casado ou de não ter casado?
- De ter construído uma profissão ou não?
- Qual o significado de ter morado aqui ou ali?
- De ter viajado ou não viajado?
- De ter escolhido determinados relacionamentos?
Como se dentro de si, uma voz lhe falasse: “Tem que ter valido a pena tudo o que você viveu”.
Porque essa é a idade de encontrar o significado do vivido, de ligar os pontos da sua história. A consciência do significado da sua existência, lhe empodera. Esse empoderamento é diferente do empoderamento das outras Estações pelas quais passou.
É o empoderamento na alma. A mulher de 60 anos não faz mais ameaças, ela vai embora se não tiver mais confortável nas situações. A vida se torna mais simples, começa a encontrar a sua verdade, individual, subjetiva, particular, singular.
É a Estação da liberdade, da missão cumprida (se é que existe uma missão), de encarar os propósitos alcançados ou não. De saber que não realizou todos os sonhos e que repente eles não têm mais a importância que ela lhes dava. De poder vestir-se como realmente quer, usar ou não maquiagem, pintar ou não o cabelo, ficar em casa ou sair; agora a vida começa a ficar ao seu gosto. Já não faz promessas por saber que nem sempre poderão ser cumpridas.
Torna-se, ao mesmo tempo, tolerante para muitas coisas e sem paciência para muitas outras. Não discute mais por bobagens, não tolera mais desaforos nem indelicadezas consigo. Suas respostas para a vida e para as pessoas são mais rápidas e mais firmes. Sente uma espécie de urgência. Urgência de eleger as prioridades porque eu já sei que o tempo urge, o tempo é o Agora.
Reconheço as vantagens de ser uma perigosa mulher de 62 anos: eu me sinto mais ampla, eu me calo quando minha voz não tem importância para o outro, não guardo mágoas porque elas tiram meu sono. Estou menos exigente comigo mesma, me perdoo com mais facilidade pelas besteiras que fiz e que ainda faço – agora bem menos porque paro, sinto, respiro e só depois eu ajo. Tenho clareza de que os meus desejos e minhas vontades nem sempre serão atendidas porque assim é para todas as pessoas. Posso fazer o meu melhor na minha vida pessoal e profissional, mas é só o que me compete fazer. Aprender a viver sem expectativas e não esperar nada do outro pois não sabemos o que a pessoa pode nos dar.
Minha visão da velhice é realista: traz muitas perdas, talvez mais que nas idades anteriores. E ganhos também, como em todas as idades. Se diminui a nossa visão, aumenta a agudeza da nossa alma. A audição é menor, mas escuta-se mais a voz interna e a intuição tornam-se mais forte.
Crédito Fotos: Edu Carvalho
No entanto, eu não romantizo a velhice volto a afirmar. As perdas são muitas: físicas, sociais, afetivas. Dói muito, por exemplo, o fato de ir perdendo os pares à medida que o tempo avança.
Considero que é a idade de entender mais profundamente o significado do vivido para encontrar o sentido da vida, da sua vida. O sentido está à nossa frente, é o encontro com o que está lá: nossa Finitude.
Quando eu penso na minha própria finitude eu sinto uma saudade antecipada de mim mesma. Saudade da minha vida, saudade de todas as pessoas que amo. Penso que levarei esta saudade comigo quando eu morrer. Gosto muito de viver. Tal como ouvi de Jorge Ponciano (Fortaleza, 2019) vou morrer sob protesto.
Tomar consciência de que a direção é a Finitude não é tarefa fácil. Ter conhecimento, saber teoricamente, eu sei. E até me sinto preparada, de certa forma. Mas é difícil, ainda.
O ser humano só pode falar do lugar da sua experiência. Agora, posso falar das dores e sabores de estar chegando na minha velhice. Que seja bem vinda!
Fatima Diógenes
Psicóloga e escritora de contos e histórias.
Escrito por Fátima Diógenes
24 Comentários
Enviar um comentário
Artigos relacionados
Blog Gestalt-terapia
MEU DIÁRIO GESTÁLTICO – Eu amiga de Clarice Lispector?
Será muita audácia me sentir amiga de Clarice Lispector? Em um de seus textos, ela traz o tema da insônia*, que já fazia parte de sua rotina. E de tanto ter, desistiu de brigar com ela. Então, na hora em que acordava, em geral, por volta das 02h00, e se percebia sem...
MEU DIÁRIO GESTÁLTICO – Algumas reflexões acerca do contexto pandêmico à luz da Gestalt-terapia! (parte 4)
CAMPO A compreensão de totalidade da vida nos remete a outro conceito muito importante da Gestalt-terapia, que é o conceito de campo. Yontef (1998) diz que “um campo é uma teia sistemática de relacionamentos e existe num contexto de teias de relacionamentos ainda...
Utilizando a poesia como recurso para as travessias existenciais
Utilizando a poesia como recurso para as travessias existenciais Vida que me chamou Para decisões rápidas aqui... Escolhas difíceis acolá. Mal dormidas noites e Cansativos dias para O aprontamento da quarentena. Confiar que tudo se reorganiza Da melhor forma: a...
Amei.
Você é realmente uma mulher perigosa.
Me identifiquei com o texto.
Como você escreve bem, dá gosto de ler.
Um abraço.
Chica.
Gratidão por sua confiança. Bj
Que lindo! Emocionante esse pensamento!
Gratidão. Bj
Ahhhh que maravilha de texto Fatinha que vc fique cada vez mais perigosa
Gratidão
Excelente texto, pois nos leva a reflexão!
Gratidão minha irmã.
Sempre muito sábia nas suas colocações! Me inspira muito!
Grata Paty. Bj
Parabéns pela beleza do texto! Muito, muito expressivo e verdadeiro. Toda mulher, de alguma forma, se identificou com suas palavras… Os medos, angústias e incertezas fazem parte desse momento tão difícil que é a chegada da velhice. Mas, é preciso maturidade também…. e sabedoria para colher os frutos advindos do tempo. Sucesso em suas publicações! 💗💕
Gratidão minha querida.
Excelente Texto! Altamente inspirada qdo escreveu e muito bem escrito.
Vou compartilha-lo e tenho certeza que minhas Amigas se identificarão,tanto ,qto eu ,com suas palavras.
Servirá de reflexão para aquelas que tem a coragem de olhar a velhice com este seu olhar.
Vc também me inspira. Bj
Ah minha amiga…como eu gosto de ler seus contos e reflexões. Eu vou lendo e começo a escutar sua voz e ver sua imagem na minha mente. Você, sentada numa mesa, sorrindo as vezes com os cantos da boca, ao mesmo tempo que balança um pouco a cabeça para os lados enquanto fala. Ler suas histórias é também uma forma de poder visitá -la, de encontrá-la e matar as saudades. Suas histórias são maravilhosas, porque falam de coisas simples do nosso cotidiano profundo. Me fazem viajar para quem você é; e com quem eu me identifico muito e gosto de estar. Gratidão por você existir, Fafá.
Lorena; sua amiga-irmã de uma vida.
Só gratidão por contar com sua amizade minha amigairmã. Abraço-te.
Ah minha amiga…como eu gosto de ler seus contos e reflexões. Eu vou lendo e começo a escutar sua voz e ver sua imagem na minha mente. Você, sentada numa mesa, sorrindo as vezes com os cantos da boca, ao mesmo tempo que balança um pouco a cabeça para os lados enquanto fala. Ler suas histórias é também uma forma de poder visitá -la, de encontrá-la e matar as saudades. Suas histórias são maravilhosas, porque falam de coisas simples do nosso cotidiano profundo. Me fazem viajar para quem você é; e com quem eu me identifico muito e gosto de estar. Gratidão por você existir, Fafá.
Lorena; sua amiga-irmã de uma vida.
Recife-PE
Parabéns Fátima, excelente texto!
Clarissa Estés, do livro Mulheres que correm com os lobos diz que nenhuma de nós pode fugir da nossa história, que podemos mantê-la num segundo plano, mas ela está ali do mesmo jeito. Vejo você encontrando suas histórias com muita coragem, integrando suas vivências entre os acertos e erros da vida e se apropriando lindamente de sua biografia.
Gratidão por partilhar este texto tão lindo e verdadeiro.
Márcia Lucena
São Paulo /SP
Maravilhosa reflexão!
Vamos viver nossa finitude com alegria e prazer, sem se preocupar com as horas que nos resta, mas com a esperança de nascer com as manhãs.
Parabéns querida.
Que lindo Fátima! Escuto sua voz quando leio esse texto. Te considero uma mulher muito corajosa. Também gosto muito da vida! Mas viver não é simples. Talvez a habilidade de ser perigosa seja de fato necessária nessa nova fase.
Mantenho minha admiração por você, que é você mesma em todas as fases da sua finitude!
Que lindo Fatinha! Delicado e sincero como você ❤️ Obrigada pelas reflexões
Muito lindo. Um texto muito bem escrito!
Um abraço🍀
Parabéns pelo belo texto, Fatima.
Lembrei de como dizia Chaplin: “Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso”. Depois, ir voltando, voltando até o orgasmo inicial. Talvez, assim, pudéssemos curtir a infância, a adolescência e adultícia com mais poesia e sabedoria.
Minha Mestra querida.
Que texto maravilhoso porque, com certeza, a grande maioria de nós mulheres se identificam com boa parte de sua história.
Me identifiquei, mas com 10 anos a menos. Acho que porque sempre tive perdas de todo tipo (exceto da morte) desde pequena. Minha vaidade é tão pequena que não me aprisiona.
Mas, não sei porque, não tenho dificuldade em encarar minha morte. Seja agora, amanhã, quando vier. Só não quero antes sofrer de dor. Já sei demais o que são dores paralizantes. É meu unico pedido à vida.
E, sinceramente, se eu pudesse ser dona da minha linha de vida, pediria para ir aos setenta. Iria de coração tranquilo, até mesmo hoje se fosse o caso, sabendo que fiz tudo que pude, dei o meu melhor que pude… Irei sem arrependimentos e com agradecimentos a pessoas que me ajudam no processo de vida. E você é uma das mais importantes: minha Mestra.
Beijos
Um feliz ano novo e uma vida enriquecida de sabedoria. Isso é o que importa.